quinta-feira, 15 de maio de 2008

noite-apenas


“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”...sol amarelo uma ova! Animei-me a pintar um quadro. Giz de cera sobre papel sem pauta, minha única técnica. Escolhi dentre todos os bastões o mais negro, para pintar o céu, um céu sem lua, para que todos pudessem olhar e dizer que no meu desenho era somente uma noite, e não uma noite sem lua. Onde está a lua? Por que o céu está escuro? Ora, na me venham com tais indagações! Era noite o que eu queria, uma noite pura, sem estrelas, nuvens e mesmo, sem lua...posso pintar um céu assim! Embaixo desta minha noite, prédios cinzas, numa luta incessante pelo infinito: “eu sou o mais alto”. Prédios-prédios e suas parcas luzes do fundo, do próprio papel (assim poderia ser a lua se a minha noite fosse como a do livro colorido que me davam na escola). Nos prédios, minúsculos apartamentos de janelas peliculadas, e no batente, um vaso marrom-escuro com terra roxa, onde repousa serenamente um caule seco do que um dia fora uma roseira, mas agora é só um vaso esquecido ali, por algum funcionário negligente, que dispensa seu tempo triste aos programas de tv. Não queria flores na minha pálida criação, essas não são as cores que eu me dei. Um M aberto passa riscando de negro as cores cinzas dos arranha-céus, ele nunca pousa, pois some e se mistura com os riscos que cobrem o branco, para que observem que é noite-apenas. As lojas não vendem folhas pretas, se vendem, elas são mais caras, uma espécie bem especial. Apenas folhas brancas vendem, mas na escola disseram que alguém disse que antes de tudo existir só existia escuridão, trevas, e as papelarias vendem até folhas cor-de-rosa, mas não há uma caneta branca para pintar no negro, manchá-lo. O bastão negro vai gastando para transformar o papel branco em negro, sai de um mero lápis para uma noite-apenas, que existia antes de tudo e que ninguém sabe explicar. As roupas brancas não são manchadas, é impossível, o negro é a ausência de cor, “faça-se a luz”, a primeira manchada do mundo, agora ando comprando giz de cera para desmanchar a minha noite-apenas.


Carlos Dias