quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O olhar de Baudelaire e Sophia


Quem é olhado ou se crê olhado
levanta os olhos
(Walter Benjamim)

A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), legítima representante da produção poética contemporânea portuguesa, apesar de sua qualidade indiscutível, ainda é bastante desconhecida pelo público brasileiro. Com uma escrita que passeia pelo ensaio, pela literatura infantil, pela tradução, sua maior expressão é, sem dúvida, a poesia. Há críticos que observam uma relação íntima da poesia de Sophia com a poética clássica, sobretudo a de Safo de Lesbos, uma relação também com Camões e uma relação com a poesia de Fernando Pessoa. Apesar de “praticante” (não colocando-a necessariamente nessa posição) de uma poesia clássica, há marcas essenciais na sua produção que também a aproximam do francês Charles Baudelaire. Essas marcas, que aqui se apresentam dentro de uma “tradição” do moderno, enveredam, sobretudo, por uma utilização do olhar, que nela se apresenta como o “toque mágico” de toda produção artística. Helena Carvalhão Buescu, num ensaio intitulado Sophia no país das maravilhas, faz referência a essa temática do olhar:

“Esta profunda consciência de um jogo fundador da existência, que passa pelo olhar/ser olhado, percorre toda poesia de Sophia.”

Esse jogo fundador da existência estaria no fato de que o olhar do poeta, como um visionário (a palavra na significância de sua etimologia), seria capaz de despertar os objetos que estão ao seu redor, num processo de deslumbramento do mundo. Esse “demiurgo” seria um catalisador da própria existência e da experiência existencial. O toque do olhar do poeta é o contato do olhar com o real, nesse caso o poema corresponderá ao “gesto apolíneo que ordena e apazigua ao modelar a substância informe”:

A Estátua

Nas suas mãos a voz do mar dormia

Nos seus cabelos o vento se esculpia

A luz rolava entre os seus braços frios

E nos seus olhos cegos e vazios

Boiava o rastro branco dos navios

[No tempo Dividido]

Essa estátua que “dormia” fora um material informe que agora “boiava”, como se dentro de sua própria existência fria a essência da estátua já existisse.

Buadelaire, o flâneur que passeia pelo boulevard de Paris, é aquele que percebe, ou mesmo desperta, para uma poesia que apela para o visível, dotando por vezes esse sentido de um poder observador que rompe as barreiras da materialidade: “Celui qui regarde du dehors à travers une fenêtre ouverte, ne voit jamais autant de choses que celui qui regarde une fenêtre fermée”. Quando, no poema “As Grutas” , Sophia canta "as imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim” não está muito distante de Baudelaire que arrisca num poema de Spleen de Paris:

“Ce qu'on peut voir au soleil est toujours moins intéressant que ce qui se passe derrière une vitre. Dans ce trou noir ou lumineux vit la vie, rêve la vie, souffre la vie”

Essas imagens referidas pelos dois poetas lhe concedem a própria razão da existência, por isso elas são trazidas, num exercício do “olho” – que não apenas é o ver “realmente”, mas também o olhar pela janela fechada de Baudelaire – para dentro da existência do poema. A criação, nesse sentido, repousaria na disposição de usar o olhar para ver dentro das coisas a fim de lhes conceber formas. O olhar apresentado por Sophia é um olhar mais sereno, que toma para observação imagens relativas a uma paisagem praiana, que também é uma imagem mais silenciosa. Já Baudelaire, o próprio Peintre de la vie moderne, toma imagens que permeiam o universo cosmopolita de uma metrópole em desenvolvimento em todo o seu furor de moda e de industrialização.

Carlos Dias (mestre em estudos literários - UFPA)

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